quarta-feira, 8 de julho de 2009

És toda Goa...


Juro-vos que não é preguiça e explico-vos porquê.
Já não escrevo para quem me leu ou para quem me lê agora, desde 7 de Maio.
Se, por um lado, me poderia sentir incomodado (porque já sabem, muitos vos estimo e não quero que passem sem mim), a verdade é que esta lacuna informativa acontece por ausência de novidades.

Quem já passou os olhos por alguns dos posts mais antigos deste impressionante espaço na web, imediatamente se aperceberá que as novidades se esgotam ao fim de poucos parágrafos.
Porque, efectivamente, não há nada de novo no deserto. Isto é mesmo assim.
Há é muito folclore mas a esse nível, estamos conversados.
Não quero que deixem de recomendar o DoandBuy aos vossos melhores amigos e, é por isso, que me sinto no direito de não o banalizar.
Como tudo na vida (e no futebol): a qualidade à quantidade.

Por outro lado, aconteceu Goa.
E porque Goa não acontece todos os dias (nem que nos sintamos da gama Vasco) necessitei de quase um mês para absorver, assimilar, desconstruir e resumir de tecla, a torrente sensacional de aquisições novas.
Quando nos apercebemos que os estágios são finitos como o petróleo, que não há férias para quem devia gostar muito de trabalhar para o seu país e que “se ia meter um 10 de Junho”, único feriado a gozar e ponte a construir, ninguém ficou com dúvidas quando propus as três letras de viagem.

É, de facto, a grande vantagem (consultar lista de vantagens) de residir aqui, qual hub para destinos nada acessíveis a europeus, mais agora que se começa a piscar o olho às low fare trips
Petra, Damasco ou a fascinante Mesopotâmia ficariam para outra altura.
Tinha que se ter coragem para escolher.
E fomos valentes. Bravos rapazes...


Mas como se explica Goa às pessoas?
Goa é muito mais bonito que o Dubai.
É com esta frase que quero começar.
E não é só “porque são realidades incomparáveis”... É porque é mesmo verdade.
O Dubai é árido, tórrido, artificial e megalómano. Goa é airosa, fresca, natural e simples.
Ah..e dizem vocês, “os gostos não se discutem”.
Pois confidencio-vos eu: eu acho que sim. Que se discutem.



Goa será um painel de azulejos ainda mais colorido do que aqueles belíssimos que encontramos nas nossas tão exclusivas estações e apeadeiros.
É uma respiração de Portugal mais lenta, envelhecida, carente e amorosa.
Goa é tão velhinha que dá vontade de a colocar numa cadeira de baloiço e aguardar que nos conte mais outra história.

Este foi o primeiro ex-território ultramarino (de todos os outros que ainda tenho para/por visitar) com quem privei...de quem senti o bafo.

E juro-vos que, apesar de poder dizer que conheço muito bem Portugal Continental, nunca tinha cheirado, visto e ouvido tanta coisa sobre o meu país.
Os esforçados e inexcedíveis professores de História com quem tive o privilégio de ter aprendido no passado, não me atestaram mais do que um guia de visita, conjunto de pistas teorizadas para a descoberta.

E é de parte desse transversal capítulo (para bem e para mal) da história colonial portuguesa que me vou deter nos próximos largos minutos de escrita.

O que mais impressiona em Goa é perceber Portugal vivido na Índia, pelas gentes de lá.
Porque Goa é Índia que leva consigo Portugal.
Um countryside (abomino a palavra “província”) português, exótico e colorido, de etnografia única e sentida.



Estar-se na Índia e sentir-se em Portugal é avassalador.
Percebemos que as partilhas culturais são compatíveis e desejáveis mesmo que explicadas por motivos menos consensuais ou até objectivamente errados.
A colonização existiu mas releva a partilha.

Há partilha em tudo.
Traços na arquitectura, nos rostos, nos apelidos, nas abordagens, na vivência social e religiosa, nos brandos costumes, na hospitalidade e na beleza.
Primeiro hindús, depois muçulmanos e, por último católicos. Sem impedimentos, ainda continuam a coabitar.


As misturas são deveras impressionantes e tudo pode acontecer. Calcorreio várias lojas em rua mal alcatroada à procura de uma t-shirt que assente na minha esquisitice. Olho para a esquerda e acredito ter visto os olhos verdes mais bonitos e a pele castanha mais irresistível de sempre. Entro e converso.
“A minha avó Maria era portuguesa mas a única palavra que me lembro de ouvir é patrão (silêncio…). "

As casas dos “patrões” são inacreditáveis, ao jeito das quintas (que mais parecem Sextas) das Beiras. Estes landlords viviam melhor que 95% dos portugueses de território metropolitano.
Seriam militares portugueses, garante da pouca necessidade de paz para a região e comerciantes. Suas esposas, domésticas e ¼ de seus filhos, ilegítimos.




Os Fernandes e Sousas (e, claro, os incontornáveis Smiths portugueses, os Silvas) são, pelo que nos pudemos aperceber pelos outdoors, placas profissionais e monumentos alusivos, as famílias que mais semearam.
E de facto, os rostos são portugueses, a pele mais escura, os olhos surpresa de cor.

“Boa tarde, são portugueses? Não queria deixar de vos dar os parabéns porque hoje é o vosso dia. O 10 de Junho.”
Replico: “…e o dia da Língua Portuguesa!”.
Não disfarço um arrepio e sorrio largamente”. Tinhamos acabado de ser abordados, num Português imaculado, pelo pároco goês da imponente catedral onde jaz o douto São Francisco Xavier. É um dos mais importantes locais de peregrinação de todo o mundo católico.

Estamos em Goa Velha.
Imaginem qualquer coisa como Belém sem pastéis, muito mais verde-castanha, quase por estimar e com os Jerónimos nada manuelinos com pedra alaranjada, divididos em grupos de imponentes igrejas.

Um magríssimo guia ofereceu-nos prestimosos serviços em troca de umas parcas 100 Rupias. De imediato, apercebendo-se da nossa capacidade para falar o Português, meio tremeliqueiro avança com um: “bom dia…eu mostro-vos a igreja do Santo.”
E assim foi, mais uma revisão da História de Portugal in loco, a milhares de kms de distância do epicentro. Desde a brutalidade da abordagem, às casas queimadas, à conversão mais ou menos pacífica das populações.
Mais outro arrepio.

Este é um dos poucos locais do globo em que Vasco da Gama é muito mais conhecido que o insular Cristiano Ronaldo.
E só por isso, já deve merecer todo o nosso respeito.

Não caiam no erro de ir a Goa sem alugar um veículo motorizado.
Motorizem-se de “acelera” por cerca de 6 euros negociáveis em 4 dias e podem, dessa forma, sem pressões de tráfego e horários esquecer a precariedade da rede de transportes públicos e aproveitar para ver os animais de pastorícia que lentamente, ao ritmo da região, vos acompanham em cima de pavimento que alterna entre o engravilhado e o mal alcatroado.
Aliás, em Goa tudo é bastante barato, o que simplifica ainda mais todo o processo.
Mas devia ser proibido ir a Goa só 4 dias…



Motorizados, descubram as praias todas, mergulhem, sequem pelo caminho, parem para fotografar e comer camarão-tigre ou as gambas a acompanhar com a inevitável Kingfisher (imaginem a Super Bock).

Com pouco tempo de preparação e um voo Dubai-Dabolim reservado em cima do joelho, pouco nos restou, se não ir à descoberta do nosso imaginário das aulas de História e buscar, se tivessemos algum tempo, o local exacto do nascimento de Narana Sinai Coissoró.

Fomos na época baixa, já ameaçados pela época de monção (podia fazer a piada fácil com um dos Concelhos da raia minhota), o que por um lado foi bom, porque visitamos com silêncio e espaço todos os locais da descoberta. À chegada ao desmazelado aeroporto, uma comitiva mascarada fez-nos, muito desordeiramente, atestar com mais ou menos exactidão que não portavamos qualquer tipo de gripe suína.

Como alguns dos meus leitores bem devem saber, as praias mais a Norte da região de Goa (na zona de Baga e Calangute) ficaram conhecidas por ser verdadeiras passerelles de globetrotters hippies da geração de 60, com sessentas, que se aproveitaram do caos pós-independência para ocupar muitos daqueles espaços (ainda vimos alguns bem “comidinhos”, entoando um Inglês arrastado e pouco recorrente). As raves, rodas e neons acontecem mais na época alta e, felizmente, não as experienciamos, como temia que pudesse acontecer.
Só não compra droga quem não quer e/ou não gosta. Todo o tipo.



Pangim (ou Panaji), a capital, merece visita atenta (assim como as vizinhas praias de Dona Paula e Miramar), situando-se centralmente na geografia da região, dividindo a confusão do Norte e a calmia ao Sul.
Qualquer coisa na dimensão de Leiria mas sem o estádio e o castelo. É muito portuguesa em tudo. Os grandes edifícios ainda utilizados pelas administrações locais são os mais imponentes e o espelho da arquitectura colonial do Estado Novo (cores, jardins e palmeiras).
Depois o ferry que nos liga ao Forte de Aguada é experiência mais que aconselhável. Aqui percebeu, imediatamente, Vasco da Gama onde escolheu acabar os seus dias, conquistado que estava o meu agora vizinho e estratégico Estreito de Ormuz, na fronteira marítima entre o Pérsico e o Índico.


O Sul de Goa é paradisíaco, selvagem e genuino. Menos português talvez.


Ficou uma parte bastante importante por conhecer. As regiões mais interiores do território que se distanciam do conhecimento geral. A selva, no fundo.

Esta foi a melhor viagem de toda a minha vida, uma polpa de cultura, história, natureza, cor, aromas e partilha. Quero mesmo sublinhar a palavra partilha.

Mas muito honestamente (talvez ao jeito do incatalogável Prof. José Hermano Saraiva a encerrar mais um Horizontes da Memória) sinto uma aflição inexplicável ao perceber, bem ao jeito da péssima gestão patrimonial que caracteriza Portugal na transversal, que o ensino do Português não seja fomentado, que não se tome providências em jeito de concertação política para que o ainda palpável legado não caia de vez.
É uma aflição mesmo.
Bastarão duas gerações para que tudo se esfumasse em fogo animado de vento forte.

A universalização do Inglês – estes ingleses sim, geniais gestores – sente-se (e bem) por aqui . Conhecendo, claro está, toda a história victoriana da região.
Temos como sempre, as maiores responsabilidades, pelo abandono cultural a que votamos estes territórios-irmãos mas clamamos, como sempre, a partir do conforto de nossos aposentos aveludados, que ninguém faz nada.

Recomendo, para trabalho de casa, A Causa da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos por Antero de Quental.
Explica, de forma glaciar porque em Portugal se canta o fado, porque é que Dom Sebastião tarda em aparecer e porque não se avizinha baixa do nevoeiro.
É ensaio de uma actualidade e intemporalidade cortantes, passado que está mais de século e meio desde sua escrita.

Goa é mais que recomendável.
Goa é compulsória.

Para consultar o registo fotográfico mais completo: http://www.facebook.com/photo.php?pid=1887439&id=799922242#/album.php?aid=85182&id=799922242